Reviews ākāśa

Esse é mais um registro dos tempos atuais, reflexo da quarentena que nos confinou em nossas casas, tanto lá quanto do lado de cá do Oceano. A ideia partiu do percussionista João Sousa, que convidou, em março, José Lancastre (saxes alto e tenor), Jorge Nuno (guitarra acústica) e Hernâni Faustino (baixo e violoncelo) para a empreitada. Cada um em sua morada, os quatro músicos realizaram esta sessão de improvisação livre aproveitando as facilidades e possibilidades da tecnologia. Todos são músicos experientes da cena portuguesa e, só de ver o nome deles reunidos, já se cria a expectativa de algo forte vindo. Para quem conhece Lencastre, Nuno e Faustino de tantos variados projetos ligados à free music, o resultado de akasa surpreende. Há, sim, algum tema com linhas mais diretas e enérgicas, como “Quarto Crescente”, com o sax tenor de Lencastre faiscando. Mas a maioria dos momentos exibidos nas 11 peças que compõem o álbum nos leva a mergulhar em outros universos, onde certo spiritual jazz dos anos 60/70 marca presença. Não conheço bem o trabalho de Sousa, mas talvez essa seja sua mão no quarteto pesando: além da ideia da gig virtual ter sido dele, Sousa toca sitar, bansuri, feng gong, alimentando a atmosfera oriental que marca, de um modo geral, o belo registro. Explica o release: “este quarteto nasce em quarentena, desafiado a gravar os seus instrumentos com os seus telefones ou dispositivos de gravação, para criar peças improvisadas como um hino ao que parece ser aleatório, mas que se mostra como verdadeira conexão“. Fabricio Vieira

 

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Em tempos de isolamento podemos à distância criar proximidade. Em tempos de isolamento, com o carregar no botão rec, podemos aproximar-nos de diferentes formas de criação. Esse carregar no rec entre 4 pessoas originou, após um trabalho de edição e masterização do João Sousa, o álbum ākāśa. João Sousa lançou o desafio e Hernâni Faustino, Jorge Nuno e José Lencastre juntaram-se para que em quarentena surgisse o disco que não queremos parar de ouvir. Onze temas que nos preenchem espaço e enchem até à lua cheia. Conexão – A palavra-chave deste disco. Conectemo-nos ao tempo, ao espaço e por vezes ao confinamento que mais que externo é interno. ākāśa, título do disco, e primeiro tema, é um início intimista de notas subtis mas intensas que nos levam até à exteriorização de uma voz. Talvez o meu estado de espírito (confinado e livre em simultâneo) fique claro nesta review. A música criada em isolamento aproxima-nos de pensamentos mais pessoais e de momentos e experiências que nos fazem ter presente a palavra saudade. A velocidade de processamento entre o meu cérebro e a caneta vai aumentando ao longo do disco. Se começo apreensiva, rapidamente me solto entre o que ouço e o que escrevo. E gosto disso. O tempo atual corre devagar e temos pressa que passe mais rápido. Mas este disco faz com que o tempo corra e faz-nos desejar que o tempo volte a passar mais vagarosamente. O “espaço” (segundo tema do disco) esse é pequeno hoje em dia. Cem metros quadrados parecem-nos apenas um. Mas o “espaço” neste disco é gigante, amplo e abre-nos os pulmões para respirar sem termos de abrir a janela. É um “espaço” em que se fecharmos os olhos não imaginamos que os músicos não estão na mesma sala. Próximos uns dos outros. O “espaço” é um mantra. Algo que nos transcende e nos leva para a tão desejável paz interior em que a meditação e a guitarra acústica se complementam na perfeição. Um “espaço” interessante de se cohabitar. Se existe equilíbrio entre corpo, mente, música e influências distintas é neste tema. Do mantra a um pequeno caos vai um “pulinho”. Talvez exatamente o ponto em que muitos de nós se encontram agora. Entre inquietudes e pequenos equilíbrios. Entre ansiedades e momentos de descontração. Imagino por momentos alguém a andar numa corda entre duas varandas de uma qualquer rua no mundo. Entre a concentração do equilíbrio e o medo de cair. Equilíbrio. Desequilíbrio. Tudo num espaço de 7 minutos em que do outro lado da corda, na outra varanda, tudo termina de forma linear. As cordas descoordenam os passos mas o mantra mantém a sanidade. A sério que não estão juntos na mesma sala? Este disco é a prova que a distância física é muito distinta da distância emocional. Rapidamente entramos num “quarto crescente” que anula o que o disco nos vinha a trazer. É um “quarto crescente” de momentos em que a mente se descontrola. Mas é na “lua cheia” que regressamos a momentos em que entre o oriente, o saxofone e a voz se procura amenizar o frenesim de um “quarto crescente”. Claro que quando a lua míngua em “quarto minguante” talvez o nosso estado emocional nos faça querer acreditar que a seguir podemos abrir a porta e ir ver este novo projeto ao vivo. Só faltava a “lua nova” para que as cordas do Hernâni fizessem ressoar o que de intenso ele traz a cada tema. Porque se neste disco tanto nos podemos sentir, efetivamente isolados, também nos podemos sentir sistematicamente a saltar da janela e viajar. Entre dias mais cinzentos, dias mais ensolarados. Podemos sentir-nos numa esplanada em Lisboa e até no meio de uma multidão algures na Índia. A música tem destas coisas.

Volto à minha sala. Ao meu papel e caneta. “Falta um passo” e cabe-nos a nós escolher qual. A mim “falta um passo” leva-me para o faltar um passo para me conseguir equilibrar. Para equilibrar emoções com realidades. Lá estão as cordas. “Falta um passo” reflete 4 músicos numa sintonia perfeita, ritmada, demarcada – passo a passo. Voltamos aos cem metros quadrados que parecem um em “lack of space”. Que esquizofrenia que podemos ouvir nas nossas cabeças ou na casa ao lado. Pode durar trinta e quatro segundos mas não há um dia em que um de nós não sinta emocionalmente isto: “lack of space”. Respiremos então. Um sopro. Em “interspace” nada mais é preciso acrescentar. É deixar que o som nos entre pelos ouvidos e o escutemos com atenção. É o reencontro dos quatro. Serena e pacificamente. “Clouds and oceans” – o que dizer? Entre algumas nuvens e um mar, por vezes, tempestuoso vamos caminhando até eliminarmos por completo que este disco foi gravado em quarentena. Quando ouves o disco o alinhamento faz tanto sentido que nos mexe com os sentidos. “Lo que no esperabas” é que a guitarra acústica te pudesse fechar tão bem um disco. Mas desengane-se quem começar a ouvir este tema e achar que não vai aparecer um saxofone a mexer-te com as entranhas. Mexe. E mexe no bom sentido. Não é dado adquirido que se mantenha o equilíbrio constante fechado em casa e este tema é isso mesmo

Quatro músicos.

Quatro abordagens.

Quatro sítios diferentes.

Quatro.

Um disco que se ouve atentamente, que mexe com as emoções de quem se encontra em isolamento. Que traz agarrado a si a palavra saudade. Que faz com que a esperança de voltarmos a estar juntos vá e volte em cadências distintas. Que disco! E que vontade de ver exatamente este alinhamento, mas ao vivo. Todos na mesma sala. Margarida Azevedo

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O processo (combinação de gravações a solo, de modo a criar um grupo virtual) não é novo, mas em tempos de confinamento ganha um significado algo diferente. E não é novo desde que, nos meios da improvisação, essa metodologia iminentemente colectiva de criação musical, se percebeu que gravar música improvisada, efémera por natureza e condição, é fixar a improvisação, torná-la composição. Ao invés de se aceitar a incongruência e de se achar que esta corrente está confinada aos palcos e apartada dos estúdios, muitos improvisadores menos ortodoxos entenderam que estava aqui um filão a explorar e volta e meia assim tem acontecido desde que esta prática se tornou numa tendência autónoma em finais da década de 1960. No caso deste álbum (o título lê-se como “Akasha”) o recurso vem com a desculpa da necessidade: obrigados a estar em casa devido à epidemia do Covid-19, os quatro músicos trocaram ficheiros de som entre sim para cada um acrescentar o seu contributo. A montagem final é o que vem aqui.

De algo distinto do que João Sousa e, nos seus respectivos casos ainda mais, José Lencastre, Jorge Nuno e Hernâni Faustino têm feito se trata. Depois de uma estadia do primeiro na Índia, onde esteve em retiro de meditação e a estudar sitar, o baterista, guitarrista e manipulador de dispositivos electrónicos do colectivo A Besta surge não com os seus habituais instrumentos, mas com o dito sitar, flauta bansuri, um sortido de percussões em que se destacam as taças cantantes e um gongo Fench, e voz. Até agora, o músico desenvolvia a sua actividade em duas áreas: a da música improvisada com matriz idiomática no rock e a da música meditativa. As duas vertentes reúnem-se nesta colecção de temas, resultando numa improvisação que recupera o carácter espiritual do free jazz tocado por figuras como Alice Coltrane e Pharoah Sanders e transporta-o para zonas não exploradas por estes. O seu poli-instrumentismo é mimetizado por dois dos outros intervenientes: Lencastre toca saxofone tenor para além do seu habitual alto e percussão e Faustino acrescenta violoncelo e kalimba ao seu contrabaixo. Nuno participa com uma guitarra acústica, o que é outro atractivo. Eis a improv portuguesa que faltava ouvir, sinal de que, mesmo em tempos difíceis, a criatividade não esmorece. Rui Eduardo Paes