Metade humana e metade pássaro, simbolizando a ligação entre o céu e a terra, a união de mundos opostos, Garuda é uma figura mitológica do budismo tantra tibetano. Representada frequentemente atrás da cabeça de Buda, agindo como protetora e devorando o inimigo, a serpente (naga, em sânscrito) significa ainda o estado desperto da mente. Mas Garuda é também um trio que junta o saxofonista alto Hugo Costa, há muito radicado em Roterdão, Países Baixos, nome central em grupos como Albatre, Anticlan ou Real Mensch; o muito ativo e plurifacetado Hernâni Faustino no contrabaixo (RED Trio, Wire Quartet de Rodrigo Amado, Nau Quartet de José Lencastre, No Nation Trio, Staub Quartet, de entre uma miríade de diferentes projetos, incluindo aventuras a solo); e João Valinho (Move, Antropic Neglect, Variable Geometry Orchestra), baterista que também reparte a sua atividade tentacular por múltiplos projetos e em diferentes contextos estilísticos e configurações instrumentais. A formação-base, aqui novamente alargada para quarteto, acaba de editar o seu terceiro registo, o primeiro ao vivo, gravado na Sociedade Musical União Paredense (SMUP), em março de 2024. Com Costa, Faustino e Valinho está, mais uma vez, o pianista Rodrigo Pinheiro – que também misturou e masterizou o álbum –, após uma muito bem sucedida primeira parceria em “Tongues of Flames”, de 2024, com chancela da A New Wave of Jazz, do guitarrista, explorador sonoro e produtor Dirk Serries, outro consórcio que se renova em “Live at SMUP”, em edição exclusivamente digital. Os caminhos trilhados pelos quatro músicos cruzam-se numa rede apertada de cumplicidades (Pinheiro e Faustino no RED Trio, com João Valinho a juntar-se-lhes em vários outros projetos partilhados), embora nunca tivessem tocados todos juntos até 2024. O trio começou a ganhar forma no verão de 2021, quando Hugo Costa convidou Faustino e Valinho, aquando de uma passagem por Lisboa, para uma sessão de trabalho, ressaltando a empatia musical que logo se estabeleceu entre os três músicos. A estreia discográfica, homónima, aconteceu em 2022 pela Subcontinental Records, muito possivelmente a única editora independente indiana de música experimental. A colaboração com Pinheiro surgiu após um concerto que o juntou a Costa e Valinho na Cossoul, a 7 de julho de 2022, que revelou altos níveis de interação. No dia seguinte, tinham uma sessão marcada em estúdio em trio e não hesitaram em convocar o pianista. Se “Tongues of Flames”, o resultado, foi um álbum mais introspetivo, de traços jazzísticos mais vincados e, certamente, mais espiritual, o novo álbum, talvez por ter sido registado ao vivo, e também pelas circunstâncias da sala nesse dia em particular, é mais energético e emocional, catártico mesmo. Hugo Costa recorda com nitidez a noite do concerto: «Mesmo antes do concerto fomos informados de que estava a decorrer um ensaio da orquestra filarmónica que, infelizmente, não podia ser cancelado. Portanto, o nosso concerto ia decorrer ao mesmo tempo do ensaio da orquestra, que estava a ensaiar mesmo debaixo de nós», diz o saxofonista à jazz.pt. «Por essa razão, começamos o concerto com grande intensidade de volume e dinâmicas para igualar, ou até mesmo sobrepor, o som do ensaio da orquestra.» Em jeito de brincadeira, diz, apresentaram o concerto ao público como «Garuda trio mais Rodrigo Pinheiro mais big band.» Pinheiro tanto pode aportar (mais) intensidade, como servir de contraste e refrigério, como se o trio tivesse mesmo nascido para ser quarteto, trabalhando as dinâmicas e movimentando-se com propósito entre os dois extremos. «O Rodrigo tem uma abordagem muito física, percussiva, oferecendo uma paleta harmónica rica que amplia o espectro tímbrico do trio», sublinha Costa. «O pianista tanto adiciona urgência, tensão ou suspensão, que levam o quarteto para outros níveis de intensidade, mas também a qualidade de trazer a música para águas mais calmas.»
A proposta sonora do trio continua solidamente fundada na linguagem do free jazz, plena de urgência e explosividade, da improvisação livre e da música contemporânea, sem premissas e com os músicos ávidos para explorar diferentes territórios sonoros. A música que urdem é urgente, dinâmica e de intensa propulsão, mas que não descura, a espaços, uma componente mais contemplativa e atenta ao silêncio. Não há hierarquias ou subordinações de qualquer tipo, antes uma equidade nos papéis, todos decisivos para a construção sonora. Tudo o que se escuta nesta gravação ao vivo foi completamente improvisado numa lógica de espontaneidade e comunicação em tempo real. «O modus operandi criativo», explica Hugo Costa, «baseia-se na confiança mútua, [no gosto] de correr riscos, numa escuta profunda, na experiência partilhada de linguagem musical que permite criar, no momento. formas abertas e coesas.» Assumindo a influência da Cecil Taylor Unit especificamente neste álbum, Hugo Costa prefere realçar que «o mais importante é que tudo isso se dissolve em música autêntica.» “Climbing Mountains”, a mais extensa das duas peças, com trinta minutos de duração, começa com uma improvisação coletiva, com o saxofone a introduzir células melódicas (o que, diga-se, aconteceu amiúde ao longo do concerto), acompanhado pela bateria e pelo piano em erupções rítmicas e harmónicas ancoradas no possante contrabaixo. Os músicos, alternando entre o trio e o quarteto, fervem em lume alto, em movimentos livres, mas assegurando que a formação soa como um bloco uno e sólido; a certo momento, o saxofone sai de cena e é o piano torrencial de Pinheiro – o fantasma de Taylor paira por ali – que se coloca no olho do furacão e que com a dupla rítmica desenvolvem ideias, até entrarem num padrão repetitivo. Costa reentra com multifónicos e harmónicos e prossegue o seu discurso pujante, sem perder foco ou clareza, até um clímax que se desfaz em murmúrios. Tudo se aquieta e se torna mais anguloso; convergem elementos de várias etapas da história do jazz, desafiando espaço e tempo. O trio piano-contrabaixo-bateria é exemplar no paulatino tricotar de ideias, juntando-se-lhe o saxofone, sem pressas. A atmosfera rarefaz-se, abrem-se espaços, o saxofone ganha um cunho melódico e contemplativo, o piano soa límpido, contrabaixo e bateria são exemplares no recato consequente. Na secção final, a música encorpa novamente, a tensão aumenta, até a dupla rítmica guiar a escalada final da montanha. “The Eye Of The Storm”, com pouco mais de vinte minutos, segue numa senda de certa forma mais camerística, com um diálogo entre o saxofone detalhado de Costa e o contrabaixo de Faustino, com este a recorrer ao arco para acrescentar gravitas. O piano aporta ingredientes de feição clássica e o saxofone volta a introduzir células melódicas e fragmentos insistentes – que se repetem com variações mínimas –, a música agita-se, o ritmo é fervoroso. As repetições de acordes agrupados formam mantras harmónicos em constante mutação; explosões energéticas alternam com momentos de suspensão que conduzem a narrativa coletiva com uma urgência ritual. Escutam-se clusters densos, longínquos ecos de blues. A tensão volta a acumular-se, o saxofone aumenta a parada, ziguezagueando libérrimo sobre espesso manto tecido pelos demais. No fim, tudo tende para um silêncio primordial.
_______________________________
SMUP, Parede, marzec 2024: Hugo Costa – saksofon altowy, Rodrigo Pinheiro – fortepian, Hernâni Faustino – kontrabas oraz João Valinho – perkusja. Dwie improwizacje, 51 minut.
Na zakończenie krótkiej, portugalskiej zbiorówki kolejna porcja jazzu, ale tym razem w bardzo swobodnej, rozimprowizowanej formie, który w wielu momentach koncertu przybiera szaty godne free music. Funkcjonujące od pewnego czasu trio koncertuje tu z gościem, który po prawdzie powoli staje się już czwartym do brydża w tym układzie personalnym. Same gorące iberyjskie nazwiska, zatem wszelką introdukcję uznać należy za zbędną. Koncert składa się z dwóch wielominutowych opowieści, z których ta pierwsza trwa dwa kwadranse z sekundami.
Muzycy budują narrację kolektywnie, bazując na szorstkim brzmieniu saksofonu, zrównoważonym, niekiedy post-klasycznym strumieniu piana z klawiatury i dobrze unerwionej sekcji rytmu, którą niesie melodyjny drive basu, śmiało kojarzący się ze estetyką Williama Parkera. Kierunek drogi artystów zdaje się wskazywać na free jazz, ale de facto do stanu gorącej kipieli nigdy nie dochodzi. W roli strażnika emocji występuje tu nade wszystko pianista, który dobrze kontroluje emocje i często wprowadza narrację w bezmiar spokojnego, kameralnego frazowania, zapraszany do akcji przez saksofonistę, który lubi schodzić na drugi plan lub całkowicie milknąć. Szczególnie udane jest drugie kameralne interludium pierwszego seta, gdy akcja kwartetu niesiona lekkim pianem staje się delikatnie rozmarzona. Finał pierwszego seta jest wyłącznym udziałem kontrabasu i perkusji. Z kolei otwarcie drugiej części spoczywa na saksofonie i kontrabasowym smyczku. Narracja kwartetowa formuje się na dobre dopiero po pięciu minutach. Drugi set na etapie rozwinięcia wydaje się bardzo stabilny pod względem dramaturgicznym. Znów melodyjny drive basu, kontrolujące piano, zadziorny saksofon i ogarniająca dynamikę perkusja. Dodatkowe emocje na etapie finalizacji dostarcza powracający smyczek, który schodzi nisko na kolanach, łapie brud w szprychy i wiedze kwartet na finałowe zatracenie. Andrzej Nowak
__________________________________
A un anno di sitanza dall’esplosivo “Tongues Of Flames” sono tornati a registrare insieme il Garuda Trio e Rodrigo Pinheiro. “Live At Smup” è stato registrato dal vivo il 21 marzo 2024 allo SMUP di Parede, paesino vicino Lisbona, in una serata infuocata e non priva di sorprese. Una band che stava provando nello scantinato del locale ha costretto Costa e compagnia ad alzare il livello dei decibel della loro esibizione. Nonostante l’imprevisto, la serata è stata un successo.
Hugo Costa (sax alto), Hernâni Faustino (contrabbasso) e João Valinho (batteria) hanno trovato il compagno di viaggio ideale in Rodrigo Pinheiro, pianista portoghese diventato nel giro di dieci anni una colonna portante del jazz europeo, grazie alle numerose collaborazioni con musicisti internazionali.
L’album è diviso in due lunghissime improvvisazioni: “Climbing Mountains” parte in sordina, lentamente, prima che sassofono e pianoforte comincino a creare una tensione sempre più presente e tangibile, mentre contrabbasso e batteria tessono una trama ritmica sottile ma incisiva. “The Eye Of The Storm”, la seconda traccia dell’album, comincia invece già con un’eruzione di lava incandescente, con tutti i musicisti pronti a prendere il posto in prima fila per improvvisare, seguendo traittorie che raccontano sessant’anni di storia del free-jazz. Un suono tagliente ma mai disturbante: un’armonia surreale dove ogni strumento contribuisce in modo significativo alla creazione collettiva.
Un album intenso ed estremamente dinamico, in cui tradizione e innovazione si incontrano (e si scontrano) per dar vita a cinquanta minuti di spettacolare jazz contemporaneo e sperimentale. Roberto Mandolini