Se ākāśa foi o que foi, Derdeba é isso e muito mais!
Zen Burst é o início bem definido do disco. Sentes os quatro músicos presentes num ritual.
Derdeba é, para mim, a melhor malha deste disco. Podem achar que a minha paixão pelo contrabaixo do Hernâni me torna tendenciosa. Talvez sim, talvez me torne mais atenta quando um tema começa da forma que Derdeba começa. Ritmada e demarcada. Nunca me cansarei de ouvir esta malha. O groove, o contrabaixo que se complementa na perfeição com as percussões, o saxofone que nos traz do ritual para um bar de jazz, onde bebemos uma cerveja fresca enquanto ouvimos o Lencastre a dar-nos o que de melhor tem de si. E a guitarra do Jorge Nuno? Aparece no teu ouvido direito enquanto o Lencastre se mantém no ouvido esquerdo. E quando te apercebes acabou e voltas a pôr a faixa dois a tocar porque não queres sair daquele groove (sim, ouvi esta malha cinco vezes antes de continuar a ouvir o disco). Quem me conhece e for ouvir perceberá rapidamente que Derdeba é “a minha onda”.
E depois de estar em loop decidi continuar a ouvir e segui para Air. E o nome diz tudo. Sons que se propagam no ar de quem está sentado em casa de janelas bem abertas com um dia de calor agradavelmente prazeroso. Aqui sais do bar, fintas o ritual e segues para a improvisação mais intensa. Já não gingas a anca com o groove. Talvez te sintas no ambiente intimista de uma das pequenas salas de Lisboa onde costumas ir ver uns concertos. Sais da rua e entras numa sala de espetáculos. O som deixa o exterior e sentes perfeitamente que o ar é mais pesado. Agora deixa a sala de espetáculos e senta-te na relva. Experimenta. E ouve Interzonecom a mente o mais vazia possível. Deixa que o ritual volte e envolve-te nele. Já estás na relva? Então permite-te usufruir desta faixa sem que a queiras interpretar.
“Este disco, não representando, nem buscando ilustrar o ritual do povo gnawa, traz no seu ventre esta ideia de uma certa cura através de um estado hipnótico que a música traz, tanto para os seus ouvintes como para os seus criadores”. Esta é uma parte das liner notes do disco. E sim, acredito que ao criarem este disco juntos, iniciaram uma cura. Curam as mazelas do isolamento entre partilhas sonoras distintas. Em Interzoneisso é claro. Long Walk Inside, uma espiral emergente. Linhas de saxofone que te fazem entrar nessa espiral. Quatro músicos que com uma malha me levaram para o Poço Iniciático da Quinta da Regaleira. Porquê? Talvez por a espiral onde me colocaram durante três minutos e vinte e um segundos me remeta para a mesma espiral que vejo nesse Poço. Indagação (primeira) desconectou-me de tudo o que havia ouvido antes. Colocou-me os pés assentes na terra e a mente a procurar e descobrir sentidos. Isso é sempre bom. Procurarmos o nosso sentido dentro do disco, encontramo-nos em determinadas partes e deixamos fluir a nossa forma de sentir. O que anda à volta mantém-nos, a nós ouvintes, despertos e mantém-os, a eles músicos, em sintonia, mesmo que à distância. O que anda no meio é distinto do que anda à volta.
Aqui a meditação e o ritual está mais presente, mesmo no meio de nós. O ritual no meio, os músicos sentimo-los espalhados de forma organizada numa sala. O Hernâni Faustino do lado esquerdo a quem se junta o Jorge Nuno e o João Sousa e o José Lencastre do lado direito. Os quatro virados para um meio comum. São três minutos de serenidade a que podemos juntar mais três minutos de equilíbrio em Um quarto de mente. O disco tem uma dinâmica mesmo muito boa. Tanto te sentes numa dança constante, como sossegas e deixas-te ficar inerte. Simplesmente sentado. Indagação (segunda) é feita de pequenos apontamentos, como que saltitas entre pequenos momentos, ora mais curiosos, ora mais desconcertantes. Nem dois minutos depois estás em Deep Sleep e aí o saxofone do Lencastre agarra-te. E prepara-te porque não te vai dar descanso. Queres ouvir todos os outros, mas por algum motivo não te é permitido. Ele absorve-te, liga-se a ti e mantém-te sempre à procura dele, mesmo quando está ausente. Em Deep Awakening a respiração ganha um lugar de primazia. Torna tudo mais real, mais próximo. O respirar, leva-te até eles, e o João Sousa traz com ele o balanço, a onda, a intensidade. Acabar um disco com o som de uma inspiração profunda entre sopros dá-me, a mim, uma tremenda sensação de bem-estar. Mais um disco filho da pandemia, criado por quatro músicos extraordinários e que reflete que entre o isolamento e a sensação de perda de uma vida que tão bem conhecíamos, podem nascer novos projetos, novas ideias, que trazem até nós a sensação de normalidade. Vão até ao bandcamp, escutem com atenção e comprem porque o disco é bom, mas bom. Com a compra terão mais duas agradáveis surpresas, mas sobre essas irei deixar-vos curiosos. Margarida Azevedo