Muito mais do que mero tributo, “Gratitude”, o álbum de estreia do projeto Motian & More, do contrabaixista Hernâni Faustino, é veículo para explorações.
«Muitas vezes, quando estamos a tocar, não faço ideia do que vou fazer. Vou pelo que estou a sentir e pelo que estou a ouvir. Os sons excitam-me», disse, certa vez, o mestre Paul Motian (1931-2011). Inspirado no riquíssimo legado do baterista e compositor nascido em Filadélfia e crescido em Rhode Island, o contrabaixista Hernâni Faustino (n. 1964) criou o projeto Motian & More, que acaba de lançar o álbum de estreia, “Gratitude”, com selo da Phonogram Unit. «Paul Motian é uma referência, não apenas como instrumentista, mas como compositor; felizmente deixou vasta obra», começa por dizer o músico à jazz.pt. O objetivo é ir muito além do perímetro restrito de uma banda de tributo, assumindo-se o projeto como um veículo para explorações e releituras. A improvisação tem um peso bastante importante neste quarteto, que se completa com o saxofonista José Lencastre, o guitarrista Pedro Branco e o baterista João Sousa. «Para mim, não fazia sentido fazer deste quarteto uma tribute band», explica Faustino. «As melodias são o ponto de partida para podermos tocar esta música com a nossa identidade e depois poder improvisar e trazer o nosso ADN.» A música de Paul Motian está presente na vida de Hernâni Faustino há muito tempo. «Comecei a ouvi-lo no trio de Bill Evans com Scott LaFaro e depois com Keith Jarrett e Paul Bley», conta. Mas a grande revelação aconteceu com a escuta dos discos para a ECM de Manfred Eicher, “Dance”, de 1978, e “Le Voyage”, do ano seguinte, ambos com o saxofonista Charles Brackeen e com os contrabaixistas David Izenzon (“Dance”) e Jean-François Jenny-Clark (“Le Voyage”). Faustino elabora sobre o fascínio causado por ambas as gravações: «A música destes discos é introspetiva e abstrata, bastante cativante, e depois a interação do trio é fantástica com Motian mais percussionista do que baterista.» O trio com o saxofonista Joe Lovano e o guitarrista Bill Frisell desenvolveu uma música ainda mais sonhadora, lírica e fluida. Menciona também o álbum “Psalm” – em quinteto com Lovano e Billy Drewes nos saxofones, Frisell na guitarra e Ed Schuller no contrabaixo («um excelente disco que juntamente com o álbum “Misterioso”, editado pela Soul Note, ouvi vezes sem conta») –, os Tethered Moon (com o pianista Masabumi Kikuchi e o contrabaixista Gary Peacock), o trio de Kikuchi na ECM, “Sunrise”, com Thomas Morgan no contrabaixo («um exercício na forma de tocar música misteriosa») e “Nothing Ever Was, Anyway: Music of Annette Peacock”, com a pianista Marilyn Crispell e Peacock no contrabaixo. Hernâni Faustino olha assim para “Gratitude” como um álbum «sem paralelo» no seu longo percurso. «Existiu aqui um processo diferente, embora tudo tenha sido muito espontâneo e natural», refere. «O enquadramento deste trabalho acaba por ser bastante enriquecedor e é também uma forma de poder tocar com estes três músicos incríveis e que muito admiro.» A ideia para este quarteto começou a germinar após o contrabaixista ter sido convidado para tocar com os Old Mountain, projeto de Pedro Branco e João Sousa. «Todos somos grandes admiradores de Paul Motian e um dia fez-se o clique na minha cabeça», recorda Faustino. José Lencastre, amigo de longa data, com quem já tocou em diferentes projetos e formações (Nau Quartet, “Manifesto”, com a recentemente desaparecida Susan Alcorn, “Riffs”, “Forces in Motion”), também partilha o amor pela música do baterista: «A escolha era óbvia!» Só conseguia pensar nestes três cúmplices: «a interação da banda é fantástica e bastante ativa, sempre atenta no processo da escuta.» O contrabaixista enaltece a musicalidade e a abertura do grupo: «nunca abordamos os temas da mesma forma, existem imensas variantes e depois os temas saem de forma natural, como se fosse também a nossa música e na verdade acho que assim é.»“Gratitude” – gravado ao vivo em dois concertos na Sociedade Musical União Paredense (SMUP), em junho de 2022, e no BOTA, em Lisboa, no início de março de 2023 – gravita em torno das composições de Paul Motian e também do tema “Misterioso”, emblema de Thelonious Monk. «Escolhi os melhores takes de cada concerto e depois foi tratar de toda a burocracia com os direitos de autor, que foi um processo demorado e que acabou por atrasar a edição deste disco.» Faustino assumiu a escolha dos temas, com a concordância de todos. Abordar criativamente a música de mestres do jazz, evitando práticas emulativas, é missão tão espinhosa quanto gratificante. «A “tradição” do jazz foi a vanguarda de outros tempos!», sublinha o contrabaixista. «O jazz tem aquela vertente individualista e personalizada que acho que nenhum outro estilo de música tem.» E graceja: «Talvez esteja a exagerar… só mesmo os mais “maluquinhos” consigam vibrar com um inédito do Coltrane ou do Rollins!» “Misterioso”, tema escolhido para o quarteto instalar o seu som e musicalidade no início dos concertos, abre o programa em modo sereno, com a guitarra à volta do sempre reconhecível motivo central, interpelando-o, contrabaixo carnudo, bateria exemplar na contenção. O saxofone também pega no tema para o transportar para outros territórios; a guitarra multímoda de Branco tergiversa até à breve reexposição final. Duas composições em forma de medley, “Dance/Abacus” mostram o quarteto no seu habitat, explorando de forma intensiva, mas abrindo espaço e dinâmicas para a improvisação. Introduzido pelo saxofone que deambula livre, a espaços flamejante, com o resto da banda a não se limitar a acompanhar, desenvolvendo ideias que se aproximam e afastam; guitarra e saxofone assumem natural protagonismo, revezam nos solos, com a dupla rítmica a ferver em lume alto. Numa passagem mais etérea, Faustino pega no arco e adita solenidade, a bateria joga com o silêncio, saxofone e guitarra sussurram. A atmosfera é tranquila; a interação entre os quatro músicos faz-se de modo profundo, urdindo pacientemente uma detalhada tapeçaria sónica. Pedro Branco mostra, se necessário fosse, a razão porque é um dos mais interessantes guitarristas nacionais. A formação une-se para uma secção final num crescendo ameno. “It Should’ve Happened a Long Time Ago” é a composição aqui incluída que mais revela o profundo lirismo da pena de Motian, com o mote a ser dado pelo contrabaixo, a que logo se juntam os demais instrumentos, numa conversa a quatro. A atmosfera serena e o saxofone de Lencastre perscruta a lindíssima melodia, o mesmo fazendo a guitarra planante de Branco, prevalecendo até ao fim. De início mais swingante, “Mandeville” revela os ziguezagues imprevisíveis do saxofone a ganharem dianteira, interpelados pela guitarra rugosa. A inesquecível melodia surge luminosa diante dos nossos ouvidos, garimpada à vez por saxofone e guitarra. A dupla rítmica faz muito mais do que apenas acompanhar, tudo culminando na forma de calipso do tema original. A fechar, a fire music de “White Magic”, com saxofone libérrimo (Lencastre a sublinhar a amplitude dos seus movimentos), guitarra abrasiva, propulsão rítmica a todo o gás. E seguimos numa máquina imparável até final de uma jornada surpreendente. António Branco
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Motian & More is the Portuguese homage quartet to the great jazz drummer-composer Paul Motian (1931-2011), whose influence resonates deeply with double bass player Hernâni Faustino, the group’s founder, who loved Motian’s legendary role in the Bill Evans Trio, Keith Jarrett’s American quartet, and Paul Bley Trio. But Motian & More follows the sound of Motian’s seminal and long-lasting trio with Tenor sax player Joe Lovano and Guitarist Bill Frisell, originally a quintet with double bass player Ed Schuller and sax players Billy Drewes or Jim Pepper.
This quartet – with tenor sax hero José Lencastre (who is also a great admirer of Motian), guitarist Pedro Branco, drummer João Sousa, and Faustino – also feels like adapting Motian’s spirit of immersing itself totally in the moment, just like Motian said: «…A lot of times when we’re playing, I don’t really have any idea what I’m going to do. I’m going by what I’m feeling and what I’m hearing. Sounds turn me on».
The aptly-titled debut album of Motian & More, Gratitude, was recorded live at SMUP in Parede in June 2022 and at BOTA in Lisbon in March 2023. There is an obvious reverence for the seminal legacy of Motian, but Motian & More feature experienced musicians with their own strong individual voices and a strong collective chemistry.
Gratitude begins fittingly with Thelonious Monk’s playful and joyful «Misterioso» (which Motian Quintet recorded in its album by this name, Soul Note, 1987), but Motian & More allows itself more mysterious freedom in the 20-minute matching of Motian’s «Dance» (Dance, ECM, 1972) and «Abacus» (of Motian Trio’s Le Voyage, ECM, 1979). «It Should’ve happened a long time ago» (the title piece of Motian’s trio with Lovano and Frisell, ECM, 1985) highlights the role of Faustino as anchoring the quartet’s lyrical and atmospheric sound and Lencastre’s beautiful solo. Motian’s «Meanwhile» unleashed the quartet’s uplifting, post-bop energy. This excellent album ends with a powerful, cathartic cover of Motian’s «White Magic» (from Psalm, ECM, 1982), with Branco adding tons of distortion to Frisell’s guitar solo. Eyal Hareuveni
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SMUP, Parede, styczeń 2022 (utwory 1-2), BOTA, Lizbona, marzec 2023 (3-5): José Lencastre – saksofon tenorowy, Pedro Branco – gitara elektryczna, Hernâni Faustino – kontrabas oraz João Sousa – perkusja. Pięć kompozycji (Thelonious Monk, Paul Motian), 53 minuty.
Portugalia kocha jazz! Wiemy to z niejednej opowieści. Tym razem bez dróg na skróty – jeden evergreen Monka i cztery kompozycje Motiana. Tematy, improwizacje, rozciągnięte niekiedy do nastu minut i kody. Rzecz definitywnie dla fanów gatunku, ale my, starzy wyjadacze free impro, śmiało możemy pochylić nad nią nasze zmęczone receptory słuchu. Zwłaszcza, że personalnie mamy tu prawdziwy kwiat portugalskiego jazzu i stylistyk pokrewnych.
Misterioso Monka szyte jest zgrabną synkopą, a nasączone dziarskim bluesem na każdym etapie narracji. Pierwszy z utworów Motiana muzycy rozciągają do dwóch dziesiątek minut. Saksofonowe otwarcie, dynamiczne rozwinięcie, a potem zejście w kameralny minimal z intrygująco wystudzonymi melodiami. Dobrze unerwiony finał sporo tu rekompensuje. Trzecią historię otwiera efektowne solo kontrabasu. Rozwinięcie znów jest dynamiczne, podane z zębem, a potem … ponownie zatopione w nieco przydługiej balladzie. W kolejnym Motianie króluje połamany rytmicznie blues. W ostatniej kompozycji muzycy pomieścili chyba najwięcej jakości. Opowieść osadzona jest w rytmie samby, gitarzysta gra soczystego rocka, a akcje pozostałych muzyków też noszą znamiona ekspresyjnych. Zdrowe emocje towarzyszą nam tu do ostatniej sekundy. Andrzej Nowak