Com percursos vastos e distintos, o guitarrista Bruno Santos e o contrabaixista Hernâni Faustino juntaram-se para improvisar em conjunto. O resultado é o surpreendente “Spontaneous Music Sounds”.
Estava o engenheiro finlandês Matti Makkonen, nos idos de 1984, num restaurante em Copenhaga, quando lhe ocorreu a ideia de criar um sistema de mensagens curtas. Tão descontraído era que nem se preocupou em guardar os documentos originais ou em patentear a coisa. A primeira mensagem de texto (SMS, do inglês Short Message Service) só seria enviada oito anos depois, e o resto é história. Essa noção de comunicação urgente e imediata está bem expressa em “Spontaneous Music Sounds”, o novo álbum de um improvável duo formado pelo guitarrista Bruno Santos e o contrabaixista Hernâni Faustino, dois nomes relevantes do panorama nacional do jazz e da música improvisada relacionada. Com selo da Robalo, o álbum é o resultado de duas sessões de improvisação. As peças dividem-se em “Sequence Music Sounds” e “Short Music Sounds”, ambas respondendo pela sigla SMS. «O primeiro contacto que fiz com o Hernâni foi via SMS. Acertámos tudo por mensagem. Quando começámos a pensar no título do disco sugeri essa ideia», começa por dizer o guitarrista à jazz.pt. O título do álbum é, portanto, autoexplicativo, mas encerra um duplo sentido: «o facto de hoje em dia comunicarmos muito, demasiadas vezes, por mensagens curtas, e por sentir que ali estavam algumas mensagens musicais, umas curtas, outras mais longas, com interpretações sujeitas ao ouvido do recetor», acrescenta. «O Bruno teve esta ideia de intercalar temas longos com temas curtos que eu achei muito interessante. Improvisar ideias mais curtas também requer uma abordagem e um flow diferente e isso é um desafio que me agradou muito», retorque o contrabaixista. A música acabou por ser um diálogo fluido e natural entre dois músicos muito experientes, mas ávidos de explorar novas oportunidades. «Tudo aconteceu de forma espontânea e diria, também, de forma surpreendente», refere o guitarrista. «Principalmente pela fácil comunicação e sensação de estarmos logo de início sintonizados na mesma frequência, na música e no pouco que conversámos antes das sessões.»
“Spontaneous Music Sounds” começou a germinar após o convite do guitarrista ao contrabaixista para gravar para o programa que o primeiro mantém há três anos na Antena 2, “Ao Vivo e a Cordas”. «Improvisamos vários takes e, depois de uma audição, achamos que a coisa fluía de forma natural e que merecia a pena fazer uma segunda sessão para termos mais material», explica Hernâni Faustino. Na opinião do guitarrista, «a sessão correu muito bem e deixou boas sensações e quando ouvi a posteriori fiquei muito agradado com a coisa, o que nem sempre acontece numa audição mais distante do momento da gravação.» «Basicamente, liguei os micros e começámos a tocar. Íamos parando e começávamos nova conversa. Saíram daí cinco ou seis momentos musicais», revela o guitarrista. Ficou de tal modo entusiasmado com a sessão que, ato contínuo, sondou um dos responsáveis da Robalo, o trompetista Gonçalo Marques, sobre a possibilidade e interesse em editar o duo. «Gosto muito do desafio de tocar com músicos com quem nunca tenha colaborado. Os “first encounters” têm sempre um encanto especial e o duo é um formato que me agrada bastante», acrescenta o contrabaixista. «Cada disco é uma situação diferente e que varia também consoante os músicos ou grupos e a evolução do trabalho, mas diria que este álbum tem um papel importante para mim, não é todos os dias que se pode dizer que temos um disco em duo com um músico da grandeza do Bruno Santos.» Há não muito tempo seria inimaginável que dois músicos oriundos de universos bastante distintos pudessem colaborar de uma forma tão aberta e franca (e frutífera) como esta. «Confesso que do meu lado havia alguma curiosidade, a roçar o receio, pelo facto de me atirar a um universo que me é menos natural. Improvisar a partir de nada pré-definido. Um diálogo onde qualquer tema podia ser assunto em cima da mesa», realça Bruno Santos. «Acredito na improvisação como uma conversa ou um discurso/mensagem a ser entregue com coerência e interesse, seja numa base harmónica standard, seja em campo aberto. E acho que o princípio de abordar a improvisação desse modo está acima de qualquer estilo ou linguagem musical.»
Para o músico madeirense foi uma primeira experiência neste registo. «Não sabia até que ponto o Hernâni estaria “nessa”, mas ele foi logo muito entusiasta e simpático na resposta ao convite. Isso deixou-me feliz porque queria muito colaborar com o Hernâni neste registo de duo. Admiro-o pela imaginação, capacidade de criar momentos a partir de uma folha em branco e adoro o seu som de contrabaixo e expressão.» Também para o contrabaixista, a diversidade estilística das trajetórias de ambos «facilitou» este encontro musical: «A nossa forma de improvisar e a escuta atenta ocorreram de forma bastante natural, não senti que existissem desafios para além daqueles que são o de dois músicos experientes improvisarem e construírem música juntos», sublinha. Todas as peças incluídas em “Spontaneous Music Sounds” são totalmente improvisadas, resultando em momentos mais melódicos ou mais abstratos. «Olhávamos um para o outro, e eu, como estava ao leme do gravador, limitava-me a dizer: «está a andar» e a coisa ia acontecendo. Foi basicamente assim nas duas sessões», conta Bruno Santos. «É uma música que respira e onde a interação e a improvisação possibilitam a uma guitarra e a um contrabaixo criarem e aproveitarem os mais pequenos detalhes para a exploração musical seja textural ou de contrastes», reforça Hernâni Faustino. «Depois foi escolher os melhores momentos. Ou os que contassem uma história», remata o guitarrista.
Nenhum dos dois músicos abdica de ser quem é, da sua abordagem pessoal, mas estende os braços no sentido do outro. “Sequence Music Sound #5” traz uma atmosfera que começa serena, que se vai tornado mais intensa à medida que os dois músicos dialogam. Tal como “Short Music Sound #2”, “Sequence Music Sound #3” assume contornos mais exploratórios, com o recurso a objetos para friccionar as cordas e o corpo dos instrumentos; Faustino faz uso do arco e Santos injeta alguma granularidade, sem perder clareza. Já peças como “Short Music Sound” #1 e #6 envolvem-nos com a sua atmosfera onírica. “Sequence Music Sound #8” é mais nervosa e áspera; a guitarra soa, a espaços, quase como um órgão; Faustino volta a recorrer ao arco para aportar uma camada de gravidade. De “Short Music Sound #3” avulta a clareza do contrabaixo, que adquire centralidade. Em “Sequence Music Sound #6” escutamos o dedilhado diáfano do guitarrista e o contrabaixo carnudo, numa peça de uma tranquilidade inquieta “Short Music Sound #8” encerra o álbum com uma troca de sussurros.
“Spontaneous Music Sounds” é a demonstração de que músicos com itinerários tão diferentes conseguem dinamitar preconceitos e fazer disso uma vantagem, criando música bela e desafiante. António Branco